Sem título – 117

Um certo dia você se dá conta que vive de mãos dadas com a dona morte.
Uma companhia calma, sempre presente.
De tão calada se torna insignificante, a ponto de nem se dar conta da sua presença.

Você percebe sua presença quando um amigo deixa de existir.

Ou quando uma pessoa que você nunca viu na vida, mas vê diariamente em uma rede social, sofre um infarto e nunca mais posta suas pérolas em forma de gif

Antes ainda, quando você escuta um barulho de massa metálica arrastando. Aquele som característico, seguido do silêncio… e depois uma voz saindo de um fiat uno verde, caminhando em direção ao corpo estendido de um motoqueiro, ecoando pela avenida “meu Deus eu matei ele… meu Deus eu matei ele”.
Momento em que da outra janela, observa uma havaiana amarela que jaz no meio do asfalto, junto ao corpo inanimado usando capacete.

Este foi o dia desta companheira, de todos nós, escolher o caminho para aquele ser.
Naquele momento dá pra imaginar como foi o sábado do ex-vivo.
Talvez tão jocoso e já sem vida.
Talvez voltando para casa. Sei lá.

Mas certamente se aquele indivíduo único, soubesse que tinha menos de 24 horas para ainda decidir seu caminho, teria feito as míseras horas durarem uma eternidade.

Às vezes você lembra que ela existe quando após o churrasco na serra, na casa de um amigo, resolve sair com sua esposa para fazer uma trilha, para chegar até uma cascata, então resolve ir até uma depressão pelo meio do riacho, pisando nas pedras. Escorrega e desliza como um peixe ensaboado, ao pisar em um limo; descobrindo que parou com a cabeça para fora da última pedra e que por centímetros não caiu de uma altura de cerca de 40 metros. Nesse momento você lembra que a dona morte te deu um olá mais de perto.

Estimada morte sempre esteve presente.

Recordo de ter mais visto ela de perto em um dia de verão, no Paraná. O calor era causticante, quando ouvi gritos de alguém ao longe. No princípio sem definir o que e de onde vinham os pedidos de ajuda.
Somente depois de um bom tempo dava para supor que vinham de dentro de um mato, depois da terra do vizinho da frente. Quando estava no sítio do meu pai.

Neste dia, ela se apresenteou vestida com seu manto mais negro. Levando um velho, um gordo e um menino consigo, ajudada por um enxame de abelhas africanizadas.

Esta companheira de todas as horas sabe muito bem a hora de dar olá.

Mas não, ela está ao seu lado faz mais tempo.

Ela, a dona morte, veio te visitar faz muito mais tempo, não estou falando de quando, perto dos 8 anos, você desce do ônibus na frente da sua mãe e atravessa a rua, com um carro quase levando metade da sua bunda. Nem nesse momento você chegou perto de perceber ela. Ou talvez não entender o significado findouro do último dia da sua vida.

Dona morte, já estava antes presente.

Muito antes, antes de você ter sarampo com menos de seis meses de idade, entrar em coma e dona morte te balançar tão carinhosamente, querendo dizer qual será teu caminho.

Antes mesmo de você nascer com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, totalmente roxo, sem ar e com apenas um tubo de oxigênio e uma máscara para você e sua mãe.

Dona morte, atenciosa, já estava presente também ao seu lado, quase te submergindo de tanto amor, no dia em que estava na barriga da sua mãe atravessando o rio em uma lancha, durante uma enchente e os troncos tendo que ser desviado pelos remos do bote. Enquanto o piloto da lancha dava potencia total, com o barco tentando com todo esforço sobrepujar a correnteza.

Esta querida companheira, já tinha vindo visitar semanas antes, para dizer que estaria por ali por perto.
No momento que sua mãe desiste de ir fazer o pré natal, não pegando uma balsa, onde mais de 50 pessoas morreram.

Amiga que esteve mesmo presente até no momento da fecundação.
Quando segundo as leis da biologia [de tabelinha e crendices de antigamente], uma mulher não engravida enquanto está amamentando.

Dona morte esteve presente mesmo quando você era um gameta e não virou x ou y morto pelo caminho, mesmo antes de chegar a ser vida.

 

Dona morte é minha estimada cônjuge.
Um dia ela quem escolherá o caminho.
Até lá, gosto de sempre lembrar que,
enquanto ela permitir,
o caminho
quem decide
sou eu.

3 thoughts on “Sem título – 117

  1. Me parece que a dona morte apenas anda pela tangente a te acompanhar apenas para mostrar que tu tens um caminho a percorrer, coisas para fazer aqui…

  2. Confesso que até fico sem palavras diante de um texto tão bom. Encantamento, me define.

  3. A morte, surda, caminha ao meu lado
    E eu não sei em que esquina ela vai me beijar

    Com que rosto ela virá?
    Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
    Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
    Na música que eu deixei para compor amanhã?
    Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
    Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
    E que está em algum lugar me esperando
    Embora eu ainda não a conheça?
    https://www.youtube.com/watch?v=u8RSb2B8mlE

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